Cozinhando com formigas

Em São Gabriel da Cachoeira, os repórteres Camila Marconato e Francisco Maffezoli Júnior conheceram um povo que gosta muito de peixe, de mandioca, pimenta e formiga!

Começar uma reportagem sobre a culinária do Amazonas na Ponte Estaiada – um cartão-postal de São Paulo – parece estranho. É que ao lado da ponte, passando pela sede da TV Globo  fica um hotel luxuoso, que todo ano recebe chefes de cozinha do mundo inteiro interessados na culinária brasileira.

Neste encontro, uma dupla que veio do Amazonas roubou a cena.

Josefa de Andrade, mais conhecida como Dona Brasi, é índia, dona de casa e cozinheira. Conde Aquino, apelido do chef Salomão de Aquino, é dono de restaurante. Quem os apresenta é um chefe de cozinha de renome mundial: Alex Atala

“A Dona Brasi, que está aqui do meu lado, me encantou com o jeito dela ser e com uma cozinha estupenda”, comenta.

Na bagagem, Dona Brasi e Conde trouxeram peixes, pimentas e até formigas, que geralmente são consumidas in natura.

O uso de formigas na receita dominou a atenção da plateia.

“O Alex está falando que esse cheiro de gengibre que tem na formiga é dela mesmo!”, comenta uma mulher.

“Todo mundo me elogiou, me cumprimentou. Pra mim, isso aí não tem dinheiro que paga”, diz Dona Brasi.

O Globo Rural foi conhecer o trabalho dela em São Gabriel da Cachoeira (AM), perto da fronteira com a Colômbia e a Venezuela. Só se chega ao local de barco ou avião.

Um passeio rápido pela cidade e uma constatação: São Gabriel da Cachoeira, assim como a culinária do Amazonas, é essencialmente indígena: 95% da população é formada por índios.

Todas as manhãs, agricultores e pescadores trazem seus produtos para a única feira da cidade. Nas barracas, os dois tipos de formiga: a saúva e a maniwara. É nesse lugar tão cheio de cor que reencontramos o Conde Aquino e a Dona Brasi.

O Conde nasceu em Mato Grosso do Sul, vive em São Gabriel há 23 anos e tornou-se fã ardoroso dos sabores típicos da região. Um de seus preferidos é o tucupi preto – derivado do tucupi amarelo – que é um caldo extraído da mandioca.

“Os indígenas, há muitos anos, já faziam a redução do tucupi fresco até o ponto de quase um melado, pra que ele possa ter uma vida longa”, conta o Conde.

Dona Brasi também está fazendo a feira: já separou vários produtos pra usar em sua cozinha. Não pode faltar o peixe: o escolhido é a piraíba, também chamada de filhote.

Antes de conhecer as receitas da Dona Brasi e do Conde, vamos atrás das formigas! Comer formiga é tradição em São Gabriel da Cachoeira. Entre as etnias indígenas que vivem no município, uma delas ficou famosa pela habilidade em capturar essas formigas: os Baniwas. Para coletar as formigas, nós entramos na mata acompanhando uma família Baniwa, que entende do assunto.

Além do Seu Luís da Silva, foram com nossa equipe de reportagem, a filha dele, Cristina Silva, o neto Denisson, a mulher Luzia Inácia e o sobrinho Tito. A bióloga Rosimar Fernandes também nos acompanhou.

Os Baniwas preservam sua língua, são pescadores e fazem roças de subsistência, principalmente de mandioca. Eles têm muita intimidade com a mata. Sabem sempre onde conseguir frutas e caça, inclusive as tais formigas.

“Tem ‘dois’ casas de formiga ali”, diz Seu Luís.

Assim que começa a ver ninhos da maniwara na mata, a família afia um galho de árvore e fura o chão. Quando o galho afunda um pouco mais fácil, é  sinal de que ali pode passar uma galeria do formigueiro. Daí é so cavar.

A família se divide. Enquanto Dona Luzia e Seu Luís seguem para procurar outros ninhos, Cristina, Tito e Denisson desfiam a folha de bacaba, uma palmeira da região, para começar a coleta.

As maniwaras mordem o ramo e ficam presas. O Tito vai colocando tudo na panela. Ele diz que elas podem morder e que num dia dá pra pegar 10 quilos de formiga.

Cristina costuma vender um copo cheio de formigas por R$ 1, mas grande parte do que coleta fica mesmo para o consumo da família.

“Come a formiga sozinha ou com beiju, com pimenta”, diz a índia.

Enquanto eles terminam de esvaziar o ninho, uma revelação: a gente acaba de descobrir que a famosa formiga maniwara não é uma formiga, é um cupim.

“O cupim tem a cabeça mais separada, a formiga tem o corpinho como se fossem três partezinhas juntas”, explica Rosimar.

A própria casa da maniwara parece um cupinzeiro.

A saúva, sim, é formiga de verdade! Seu Luís e Dona Luzia localizaram os ninhos, mas capturá-las é tarefa muito mais penosa.

“Essa é brava como eu. Pior que a maniwara”, diz o casal.

As saúvas são muito mais rápidas e agressivas. Seu Luís espeta um galho no formigueiro. Elas sobem. Em instantes, o estrago: ele é ,ordido pela formiga.

A saúva capturada vai ser o almoço da família Silva. Seu Luís é o cacique da aldeia onde vive. Mora numa maloca bonita com toda a família. Lá, a saúva é socada no pilão, com farinha d’água, sal e pimenta. E o almoço está servido.

Deixamos a aldeia e seguimos para a casa da Dona Brasi. Ela nos ensina a fazer mujeca e quinhapira. Mujeca é uma sopa de peixe e quinhapira, um caldo de peixe com pimenta. “Quinha” significa pimenta, e “pirá”, peixe.

Primeiro, a quinhapira: Dona Brasi coloca seis pimentas graúdas e desidratadas para ferver em meio litro de tucupi fresco, aquele amarelo, e sal a gosto. Depois, vem a piraíba. A quinhapira ferve por 15 minutos. No final, ela acrescenta cebolinha e desliga o fogo. Está pronta.

Agora, a mujeca. Numa panela grande, Dona Brasi coloca uma colher e meia de azeite, meia cebola grande picada, três copos de água, sal e um quilo de piraíba. O peixe cozinha até ficar bem macio.

“Eu vou amassando com o garfo até ficar bem amassadinho. Daí que eu vou colocar outros temperos”, explica Dona Brasi.

Tomate e pimentas de cheiro, cebolinha, coentro. Depois, farinha de mandioca umedecida, para “engrossar a sopa”.

Para preparar o molho, Dona Brasi amassa uma pimenta amazônica chamada murupi, muito ardida. Depois, coloca tucupi preto, cebolinha, bastante formiga saúva e mais um pouco de tucupi.

“Formiga vai bem com tudo”, garante ela.

A mujeca sozinha é uma sopa de peixe bastante saborosa, onde se destaca mesmo o sabor do peixe. O molho tem o ardido da pimenta e um gostinho de menta, hortelã. A saúva tem um sabor bastante diferente da maniwara. A maniwara tem um gostinho de terrra e a saúva tem um ardidinho, um saborzinho de menta.

Agora, a quinhapira, que é mais ardida. Não é a toa que o nome é “peixe com pimenta”.

“A quinhapira, se não tiver pimenta, não é quinhapira, não tem sabor nenhum, O peixe fica com gosto ruim”, diz Dona Brasi.

Vendem-se mujeca e quinhapira em tudo quanto é canto da cidade e a qualquer hora do dia, mas é só à noite que se pode visitar o restaurante do Conde, onde ele costuma servir pratos mais elaborados, sempre com toque regional. O prato famoso da casa é o “Ralo Baniwa”, o mesmo que o Conde apresentou no evento em São Paulo.

“O ralo é um instrumento que as populações indígenas usam para ralar a mandioca. Um ralador. Os Baniwas têm um acabamento mais interessante, me chamou a atenção. Por isso eu coloquei o nome do prato Ralo Baniwa”, explica.

O filé de piraíba, empanado na farofa que leva castanha, ganha a aspereza do ralo. Para acompanhar, molho de tucupi preto e formiga saúva. Além do molho, acompanham o prato um purê de banana pacovam e araçá, frutas comuns na região, e uma farofinha.

O prato fica enfeitado. É bonito de ver! E de comer?

É um mundo de sabor e textura. Tem o adocicado do purê, o agridoce com o toque de menta que a formiga saúva dá, a crocância e a maciez do peixe. É uma coisa muito diferente e saborosa.

Esse gosto da saúva que alguns acham semelhante ao do gengibre, do cravo, ou parecido com a menta ou a hortelã, se deve ao ácido fórmico presente no corpo dessas formigas.

Fonte: Globo Rural